No final de janeiro de 1970 o acontecimento era o 2º Jamboree Pan-Americano em Assunção, capital do Paraguai, e o chefe Heitor Cintra, do 33 GE Tijuca Tênis Clube queria participar.
Como a passagem para Assunção era um valor alto e pelo gosto da aventura, o chefe Heitor convidou seu amigo escoteiro Fernando B. Hofmeister, amigo de acampamentos, trilhas, escaladas e cronometragens, para ir com ele viajando do Rio de Janeiro até Assunção pedindo carona nas estradas.
Preparamos a documentação necessária – passaporte e certificado de vacina contra varíola – e só conseguimos partir do Rio no dia 21 de janeiro num ônibus da Penha para Curitiba porque o prazo ficou curto para ir ate Assunção de carona, pois o Jamboree começava no dia 25.
No dia 22, no começo da tarde, começou realmente a viagem de carona rumo a Assunção e ao jamboree.
Naquela tarde três caronas nos levaram ate um posto perto de Laranjeiras do Sul. Apesar dos nossos pedidos para dormir no bar depois que fechasse, não foi possível e passamos a noite em cima da carroceria de um caminhão, ao relento. Quando acordamos, junto com o sol, tomamos café no bar com o bolo de nossas provisões.
A primeira carona desse dia foi só de dez quilômetros e ainda faltam trezentos para Foz do Iguaçu e a fronteira com o Paraguai! Mas um DKW nos deixou em Cascavel e lá conseguimos carona num Fusca de um vendedor de produtos químicos que trabalha no Rio! A sorte nos ajudou porque ele ia para Foz do Iguaçu e assim a tarde atingimos nosso objetivo chegando ao 1ºBatalhão de Fronteiras, e falamos com seu comandante Cel. Aridio, para quem tínhamos uma carta para entregar. Embora o Batalhão estivesse lotado com várias delegações de escoteiros a caminho do jamboree, nos foi permitido ficar aquela noite junto com as delegações. Pudemos tomar banho e o chefe Heitor, quando estava fazendo um curativo no pé tirou um “bife” da mão com a faca. Na enfermaria do Batalhão consertaram o chefe Heitor.
Depois que anoiteceu, chefe Heitor e eu resolvemos dormir no campo de futebol do batalhão. O tempo estava bom e abrir nossos sacos de dormir no chão de terra batida vermelha do galpão destinado ao abrigo das delegações nos faria perder muito tempo de manhã limpando os mesmos. Quando amanheceu o dia, quem olhasse o campo de futebol do batalhão pensaria num massacre porque muitos escoteiros das delegações tiveram a mesma ideia que nós e também dormiram no campo!
Bem cedo tomamos café da manhã no batalhão e pegamos um ônibus e fomos ate a Ponte da Amizade.
Atravessamos a ponte a pé e pegamos carona num caminhão que nos levou uns 40 km Paraguai adentro. Depois pegamos um pick-up Volkswagen cabine dupla alemã, de Assunção que consideramos uma carona realmente internacional, porque além da pick-up alemã, nela viajam 1 paraguaio, 4 uruguaios, 2 argentinos e o chefe Heitor e eu, os brasileiros! Chegamos em Assunção por volta das duas da tarde, hora do Paraguai, e fomos para a Federação dos Escoteiros.
Na praça em frente a federação conhecemos o escoteiro paraguaio Júlio, que quando soube da nossa aventura e da falta de abrigo, principalmente para mim, imediatamente nos convidou para ir para casa dele! O Júlio não ia participar do Jamboree. Depois de um banho saímos pela cidade para conhecer um pouco de Assunção. À noite fomos ver um cassino e eu não entendi nada!
No dia 25/01/70 e o chefe Heitor foi ao Jardim Botânico, aonde seria o 2º Jamboree Pan-Americano. Redigi os postais para duas amigas e fui aos correios colocar os postais e passar um telegrama para meus pais para dizer que estava bem. Estou começando a falar um pouco de castelhano e também sentindo falta de um bom banho de mar.
Pela manhã, 27/01/70, fui ao jamboree com o Júlio. Logo que chegamos não nos queriam deixar entrar, mas depois “conversamos” os escoteiros que tomavam conta do portão. O chefe Heitor voltou à cidade comigo para ver se o dinheiro já havia sido enviado para o Banco do Brasil. Não havia chegado à ordem de pagamento de modo que não compramos nada ainda. Passei a tarde ouvindo a Rádio Gaúcha, de Porto Alegre. À noite tentei pegar uma rádio do Rio.
Assunção, 28 de janeiro de 1970 – Não saí de casa.
Pela manhã aproveitei para arrumar minhas coisas, se bem que ainda faltava 1 semana para iniciarmos o regresso ao “patropi”. Hoje é aniversário de uma das amigas. Espero que o postal chegue a tempo porque pelos meus cálculos os postais devem chegar ao Rio amanhã ou depois. Fazia uma semana que saímos do Rio. Já descobri que o que me faz sentir saudade em tão pouco tempo é o fato de não ter nenhum amigo por perto para poder conversar livremente, sem ter que armar as frases na cabeça para depois falá-las. Descobri isso quando fui ao jamboree na 2ª feira e passei lá quase o dia inteiro. Havia horas, logo que o chefe Heitor foi para o Jamboree que eu tinha vontade de largar tudo e pegar um ônibus para o Rio. O que eu mais senti falta foi do carro: 1º porque não dirijia a mais de uma semana e 2º porque o pessoal, apesar dos carrões, dirigia muito devagar. Em Assunção não há sinais de tráfego e as batidas são raríssimas.
Agora mesmo estou me lembrando que logo que saímos da Rodoviária Novo Rio o chefe Heitor estava escrevendo desenfreadamente e disse para mim que o que eu escrevia parecia relatório. Então eu disse para ele que quando ficasse sozinho em Assunção eu tinha certeza que escreveria mais. E de dia para dia eu escrevo mais. As 20:15, corresponde a 21:15, hora do Rio. Nessas horas, principalmente, sinto falta dos “papos” no Genarino, com todo o pessoal.
Assunção, 29 de janeiro de 1970.
Hoje de manhã saí para fazer compras. Comprei uma garrafa (1 lt) de whisky “Johnny Walker” estampa negra para o papai por 850 guaranis. Para mamãe 1 coleção de lápis tipo “crayon” Caran D’Ache. Para Ana e Ângela 2 vidros de Pino Silvestre e para Nor uma esferográfica “Parker” made in U.S.A. Logo que voltamos caiu um tremendo temporal. Já parou de chover. Passei a manhã e parte da tarde ouvindo a “Rádio Mauá”, Rio de Janeiro, Brasil. Como foi bom ouvir algo do Rio!
À tarde vi na televisão um grupo de escoteiros de vários países apresentando música típica. Os “patropenses” foram representados pelos cariocas que apresentaram 2 sambas. Um foi o Bloco do Sujo e o outro “Cidade Maravilhosa”. Quando começou a tocar “Cidade Maravilhosa” me deu um nó na garganta que foi fogo. Não sei porque na festa do clube Sajonia não aconteceu à mesma coisa. Acho que foi porque cantaram “Cidade Maravilhosa” com um sotaque tremendo. Creio que sairíamos dia 4 ou 5 de fevereiro porque o Jamboree, em vez de terminar no dia 1 só vai terminar no dia 3, ao que pareceu. Eu ainda tenho fé que termine dia 1 porque apesar disso aqui ser, ou melhor, não ser ruim, não se comparava ao “Patropi”. É bom a gente sair do Brasil para dar mais valor ao que temos, ao que produzimos. No Paraguai tudo era importado. Só fabricam os refrigerantes porque até os cadernos eram importados da Argentina. Hoje vi um canivete de mola e já ia comprando quando vi que era made in “Patropi”. Esperava voltar Rio para comprar um canivete. No exterior tem-se uma ideia meio errada do Brasil. Já era tarde, creio que 22:30 h e vou dormir.
Assunção, 30 de janeiro de 1970.
Pela manhã fui ao Jamboree. O chefe Heitor me disse que está duro, pois não recebeu ainda o dinheiro. Na delegação carioca já surgiram as piadas sobre o acampamento. O pessoal do subcampo 6, o mais longe de tudo, disse que quando se chega lá não é mais o II Jamboree e sim o III Jamboree. Outra coisa é a sobremesa que servem no restaurante dos chefes. É abacaxi todo o dia. O chefe Heitor me disse que está sendo realizado o II Jambacaxi Panam.
O chefe Heitor me propôs ficarmos um dia ou dois acampados junto às cataratas, com uns escoteiros argentinos. Depois iriamos a Curitiba e se tivéssemos dinheiro pegariamos um ônibus para o Rio, de preferência um que chegue de madrugada no Rio. Não sabia se iriamos assistir à corrida de Fórmula Ford em Curitiba. Tudo dependia do dia em que iria acabar o Jamboree. No dia seguinte os escoteiros iriam desfilar em Assunção em comemoração ao “Centenário de La Epopeia Nacional”, que é como eles chamam a Guerra do Paraguai. É a primeira vez que eu vi comemorar o centenário de uma derrota, mas em todo caso “cada louco com sua mania”.
Assunção, 31 de janeiro de 1970.
O chefe Heitor almoçou aqui. Amanhã irei passar o dia no Jamboree. Parece que íamos conseguir carona até Curitiba em um dos ônibus do Rio Grande do Sul, Paraná ou Santa Catarina. Será ótimo, pois assim compraremos as passagens para o Rio logo na 4ª ou 5ª feira. O dinheiro do chefe Heitor ainda não chegou. Falamos com o Rio por radioamador, mas os quatros radioamadores do Rio não tinham telefone, de modo que só resta esperar.
Já estava louco de vontade de voltar. O chefe Heitor também, de modo que sacrificamos a corrida em Curitiba. Desde que saí do Rio que leio notícias do Brasil.
A noite eu junto com o tio e as irmãs do Júlio fomos ao Jamboree, mas não pudemos entrar. Então fomos ao aeroporto. O movimento do dito é quase nulo comparado com o Santos Dumont ou Galeão. Basta dizer que só havia um avião parado em frente à estação de embarque. Do Jamboree até em casa eu dirigi a Kombi em que estávamos. Foi bom, pois há 1 semana e 2 dias que eu não dirigia.
Assunção, 1º de fevereiro de 1970.
Passei o dia no Jamboree, que devia terminar dia 3. Lá troquei uma camiseta do 1º Jamboree, realizado no Rio, por um cinturão índio. Também ganhei o Novo Testamento, em espanhol. Era aniversário do Vô Carlos. Espero que tudo esteja bem em Porto Alegre.
A nossa saída de Assunção devia ser dia 4. Iriamos até Foz do Iguaçu. Lá passaríamos a noite e no dia 5 tentaremos chegar à Ponta Grossa. No dia 6 Curitiba e de lá, ônibus até o Rio, porque ninguém é de ferro. Também existia a hipótese de arranjarmos carona num ônibus da delegação de Blumenau até Curitiba. Mas tudo isso é “himpots”. Nada está certo. Mas espero chegar ao Rio no dia 8, domingo, no máximo.
Lá no Jamboree os brasileiros dominavam tudo, visto que há 2300 escoteiros das Américas, sendo 1000 brasileiros. Durante o banho de piscina um grupo brasileiro caiu n’água e expulsou as outras delegações, inclusive a paraguaia. Uma coisa que deixa os paraguaios irritados é quando os brasileiros começam a dizer: “3 x 0, 1 x 0, Sete Quedas é nossa”. Outra coisa que os deixou muito irritados foi quando durante uma discussão entre eles e nós, eles estavam meio nervosos e um brasileiro disse: “Calma, amigos, que o Paraguai é nosso”.
Na volta do Jamboree os ônibus estavam repletos, de modo que eu tive de caminhar mais ou menos seis km. Bem, naquele dia, foi tudo.
Assunção, 2 de fevereiro de 1970.
Eram 14:15h e eu estava descansando. Esta foi uma semana longa. Só faltavam 2 dias para iniciarmos o regresso ao Rio.
De manhã comecei a arrumar minhas coisas definitivamente. Só estava esperando o chefe Heitor ficar livre de seus compromissos no Jamboree para sairmos. Há 3 dias que não fazia nada, com exceção das idas ao Jamboree.
Em Foz do Iguaçu passei outro telegrama para casa.
Assunção, 4 de fevereiro de 1970.
Não tive tempo para escrever porque tive que arrumar muitas coisas.
As +/- 21:00h estava tudo pronto para a saída. D.Olga, a mãe do Júlio, nos deu umas lembranças para D. Dalva e para mamãe.
Sairíamos bem cedo no dia seguinte, ambos fardados de escoteiros para ficar mais fácil pegar carona, porque o Jamboree teve muita divulgação.
Se por um lado estava contente por partir, fiquei um pouco triste por deixar os amigos que fiz por lá. Só nos restou esperar eles irem ao Rio.
Dali pra frente “tudo seria diferente”. Esperávamos poder tomar um bom banho de mar na Barra.
Até logo, fui dormir.
5 de fevereiro – 15:30h
Estivemos parados a uns 200 metros do 1º Batalhão de Fronteiras em Foz do Iguaçu.
Saímos de Assunção as 6:00h (hora local) e pegamos 5 caronas, chegando as 13:30 horas (Hora do Paraguai) na Ponte da Amizade.
Ficamos lá por quase uma hora e ninguém nos deu carona. “Ê terrinha ruim, este Paraná”
5 de fevereiro – 20:35h
Por incrível que pareça nós continuavamos em Foz do Iguaçu. Passamos a noite na rodoviária. Quando estávamos tentando pegar carona passou um ônibus Foz do Iguaçu – Ponta Grossa e na janela estavam 2 escoteiros da Guiana, que nós sabemos que estavamos sem dinheiro. Na rodoviária informaram-nos que eles foram ao prefeito e que este havia dado 2 passagens para eles. Como nós demos o cartão do seu Almir para o prefeito, amanhã iremos pedir 2 passagens porque “no hay plata”.
Nosso jantar desta noite consistia no seguinte menu: 11/2 sanduíche de queijo, com 1 Coca média e um pedaço de goiabada para cada um.
Agora estamos sentados num dos bancos da rodoviária conversando sobre o que tem sido o nosso assunto: GAROTAS.
E assim estamos nós neste “fim de mundo” onde não se conseguia carona.
Como dizem os paraguaios “HASTA EL NUEVO”.
6 de fevereiro – 7:40h
Estavamos sentados na praça que há em frente à prefeitura, esperando que esta abra, o que deve ocorrer lá pelas 8:00h.
Agora só restava esperar. Todos dizem que o prefeito era boa praça.
8 de fevereiro – +/- 8:30h
Agora estavamos +/- a 300 km do Rio. Em Foz do Iguaçu o prefeito não conseguiu as passagens, de modo que sacrificamos o dinheiro que seria Curitiba – Rio e compramos passagens Foz – Curitiba.
Chegamos em Curitiba às 5 da manhã e fomos para estrada pedir carona.
Conseguimos às 8h +/- uma carona direta, numa Kombi de um casal de professores de Campinas. A nossa sorte foi que eles nos convidaram para almoçar e nós não pagamos nada.
Chegamos em S.P. as 16:00h e fomos para casa da tia do chefe Heitor que nos recebeu muito bem. Fomos à rodoviária e só teve passagem para o mesmo dia, de modo que lá estivemos nós, a bordo do Corujet da Única desfrutando da melhor coisa que S.P. tem: – A viagem para o Rio.
É como escreveu o chefe Heitor em seu diário: “S.P. não pode parar e nós não podemos parar em S.P.”
FERNANDO B. HOFMAISTER atualmente é chefe escoteiro no 82ºGE MARECHAL CASTELO BRANCO, no Clube Militar do Rio de Janeiro.
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