Se existiu mulher mais generosa que Maria Pérola Sodré, eu não conheci. Ela é uma das personagens principais do meu livro “O espetáculo mais triste da terra”, que aborda o incêndio do Gran Circo Norte-Americano, em Niterói, em dezembro de 1961. A tragédia matou mais de 500 pessoas e deixou cerca de 1.500 feridos, a maioria crianças.
Desde cedo, ela e os seis irmãos ingressaram no movimento escotista. Era um caminho natural. O pai era escoteiro, e a mãe, bandeirante. Tornou-se chefe do movimento bandeirante em 1940 e, em 1961, aos 39 anos, na hora da tragédia, já contava uma década à frente dos lobinhos, como são conhecidos os escoteiros de 7 a 11 anos. Ela chefiava o grupo Gaviões do Mar e tinha o codinome de Gaivota Branca.
Logo que ouviu a notícia do incêndio, seguiu para o hospital Antônio Pedro, o principal de Niterói, que vivia dias de caos. Havia muito o que fazer no local. E Maria Pérola fez um pouco de tudo, desde ajeitar a fiação, trocar lâmpadas, instalar fios e consertar tomadas até impedir a entrada de curiosos e falsos médicos que tumultuavam a enfermaria.
Para motivar as muitas crianças feridas, ela teve a ideia:
– Vocês não gostariam de ser escoteiros?
E assim, no dia 11 de janeiro de 1962, surgia o Grupo Escoteiro Antônio Pedro, fundado ali mesmo. Não se tratava mais da melancólica enfermaria de um hospital, era agora a orgulhosa sede de bravos escoteiros, com tudo que tinha direito, de paredes decoradas com símbolos do escotismo a hasteamento da Bandeira brasileira. Os pacientes, com os pulmões cheios de fumaça, ganharam apitos e estudaram o código Morse. Tinham que soprar para se comunicar, e, com isso, iam se descongestionando sem perceber. Como todo escoteiro, dominaram o sistema de semáfora, em que o alfabeto é formado com o auxílio de bandeiras nas cores amarelo e vermelha. É muito usado por marinheiros para conversar à distância. As crianças se comunicavam entre si na enfermaria, movendo os braços. Sem se dar conta, faziam exercícios que ajudavam na recuperação.
Nos primeiros dias após a calamidade, o hospital fervilhava de voluntários. Empurravam macas, removiam obstáculos, limpavam o chão, carregavam os doentes, alimentavam-nos. Mas Maria Pérola sabia que o movimento logo arrefeceria. Não tardou a descobrir que estava certa. No dia 25 de dezembro, muitos deles não apareceram, por conta do almoço de Natal. Tampouco voltaram nos dias seguintes. Na véspera de Ano Novo, houve nova debandada. Só ficaram os que de fato queriam muito ajudar. Maria Pérola reuniu-se com os outros chefes do movimento e avisou, com voz grave:
— Respeitamos a decisão de cada um, mas os escoteiros têm que ter disciplina. Agora a responsabilidade é muito nossa, porque o pessoal está indo embora. Nosso dia não vai acabar hoje, nem amanhã. Nós vamos ficar aqui por muito tempo.
Maria Pérola era professora dos colégios Santa Bernadete e Pio XI. Como o incêndio ocorreu nas férias escolares, entre dezembro e fevereiro ela pôde dedicar todo seu tempo ao hospital. Chegava de manhã cedo e só ia embora no fim da tarde. Às vezes, emendava 48 horas sem sair de lá. O tradicional almoço de Natal, que reunia toda sua família, desta vez sofreu uma baixa. Interrompeu as atividades no hospital apenas em um único dia. Sensibilizada com tanto sofrimento, precisava de uma pausa.
— Não adianta. Eu não estou aqui para descarregar a minha emoção. Vim para ajudar, não para atrapalhar. Tenho que me normalizar — decidiu ela, que foi para casa, tomou um banho demorado e no dia seguinte voltou.
Quando as aulas recomeçaram, ela ia três vezes ao dia visitar as vítimas. Madrugava no hospital antes de seguir para o primeiro emprego. No Antônio Pedro, falava com os meninos, passava a lição de português e matemática, corrigia exercícios, informava notas e saía para dar aula.
À tarde, comia a merenda que tinha levado e voltava para a enfermaria infantil. Cumprimentava os doentes, brincava um pouco, comentava os deveres escolares, passava mais lições e partia para a outra escola. À noite, antes de retornar para casa, ia novamente fazer companhia às crianças hospitalizadas.
De três em três meses, ainda arrumava tempo para doar sangue às vítimas. A entrega de Maria Pérola sensibilizava tanto os médicos que eles permitiam que entrasse na sala de cirurgia para acompanhar os curativos. Sabiam que sua presença aliviava o sofrimento das crianças.
— Estou aqui perto — dizia.
Na hora da anestesia, os médicos a liberavam para sair. Mas ela não arredava pé.
— Não, eu disse que ficava, vou ficar. Dei a minha palavra. Mesmo que eles não saibam que estou aqui, eu estou sabendo.
Eram tantos curativos que os médicos tiveram que passar a evitar as anestesias. Maria Pérola pensou numa forma de amortecer os suplícios. Ao entrar na sala de cirurgia, dizia à criança:
— Me dá a mão que sua dor passa para mim.
Na hora em que o cirurgião começava os trabalhos, a chefe dos lobinhos fazia caretas e fingia queixar-se:
— Ai, tá doendo.
Maria Pérola desdobrava-se sem descanso e nunca recebeu um centavo. E se lhe tivesse sido oferecido ela não teria aceitado. Foram 15 meses de abnegação quase integral. Ficou até que o último paciente, Tomaz Carvalho, de 15 anos, tivesse alta.
Às vésperas deste Natal, no último dia 23 de dezembro, Maria Pérola morreu, aos 97 anos, em decorrência de uma infecção. Como informa a “Folha de S.Paulo” no obituário, ela era a principal referência do movimento escoteiro nas últimas quatro décadas no país.
Com um nome carregado de significado, Maria Pérola era, como lembra o neto André de Wolf Oliveira, bem-humorada, positiva e despojada de bens materiais. “Minha avó acreditava que servir de exemplo é primordial para educar alguém”, ele disse ao jornal. “Importava-se com o ser humano e se sentia realizada ajudando o próximo.”
Tem toda razão. Privilegiados fomos todos nós que conhecemos Maria Pérola Sodré.
MAURO VENTURA é jornalista e autor dos livros “O espetáculo mais triste da terra – O incêndio do Gran Circo Norte-Americano” e “PorVentura”.
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