Recebi o desafio de contar a história da chegada do escaler “Sodré” ao Grupo de Escoteiros do Mar Nossa Senhora da Boa Viagem, mais conhecido como Boa Viagem, sediado no Iate Clube Brasileiro (ICB), em Niterói.
A empreita não é tarefa fácil. Passaram-se mais de trinta e tantos anos e a maré da memória é contra. Detalhes ficarão em débito. Sequer consigo precisar o ano, mas acredito que foi em 1976. Porque neste mesmo ano fizemos um acampamento na ilha de Itacuruçá, e se não me falha a memória, o Sodré serviu de apoio, e foi de caminhão de Niterói para Itacuruçá, ou seja, já estava na flotilha.
O dia da semana era uma sexta feira ou um sábado. A missão era buscar um escaler: o Sodré. Ele estava na Estação Rádio da Marinha, nas imediações do Caju, Rio de Janeiro. Posso jurar que incluía, também, buscar o escaler Tibagi. Mas isto não tenho muita certeza. Quase certo que nos deslocamos do ICB para a Estação Rádio na vela e remo, certamente, na única embarcação que o grupo possuía, o legendário escaler NAM 13, o Uauiará, ou somente Iaiá. Tampouco lembro dos escoteiros empenhados na missão: eu, o Artur Sass, e provavelmente o Luiz Augusto Paiva, Marcos Bonatto, Renato Honorato, Uwe Fischer, Otavio Bateman, Helinho, Antonio Oswaldo, Gustav e Gunter, entre vários outros. Éramos da tropa júnior, e não tenho certeza se algum sênior estava empenhado. Quanto à chefia, certamente o Roland (Francês) e o Renato De Reujt (?), e talvez o Conrad.
Estávamos todos entusiasmados para incorporar uma nova embarcação ao grupo. O Iaiá já não atendia às demandas da tropa há muito tempo. Só não nos informaram, e esta foi a grande surpresa, que o Sodré estava emborcado e completamente no casco, na madeira lisa. Isto significava uma obra, várias horas de trabalho. Nenhum de nós tinha experiência para executar aquele serviço, no alto de nossos 14, 15, 16 anos, no máximo. Em realidade pensávamos chegar na Estação Rádio, embarcar no Sodré e navegar de volta para Niterói. Aquele primeiro contato com o Sodré frustrou.
Mas gostávamos de desafios, era o que nos movia. Assim começamos os trabalhos. O que parecia impossível, foi logo encarado. Ficamos empenhados até o dia seguinte, virando a noite, sempre acompanhado do sono, do frio e da fome. Mas a gente gostava do mesmo jeito.
A obra, em poucas palavras, era uma geral: barba, cabelo e bigode. Para começar era necessário calafetar o barco inteiro. Significava fazer tufos enrolados de sisal ou algodão, e encaixar estes tufos entre as madeiras do casco, sob pressão tal que o tufo ficasse preso entre as madeiras, firme, sem escapar por cima nem por baixo. Era chato, mas depois que pegamos a manha o trabalho andou.
Depois disso aplicava-se no casco externo uma massa epox (?), seguido de outras tintas, e, finalizando, aquela tinta laranja-vermelhada, chamada “envenenada”. Tinha este nome porque prevenia a infestação de cracas no casco. E verniz nas partes que não levava tinta. O material estava disponível.
Como resultado deste esforço intenso, no dia seguinte, em algum momento, o Sodré – mesmo ainda com tinta fresca – foi para a água. Havia uma natural ansiedade sobre o barco fazer água ou não. Mas deu tudo certo. O Sodré boiou e nós fomos embora. Não me lembro se no vento ou no remo, ou mesmo rebocado. Mas foi deslizando. Assim o Sodré chegou ao ICB, incorporado à flotilha do Boa Viagem.
O Sodré era um barco médio, não muito grande. Seis a oito tripulantes, mas com duas pessoas o barco navegava. A gente dava um jeito. Dois remando já fazia esteira.
Ele parecia ter um defeito na quilha: um leve empeno para bombordo. Com alguma sensibilidade se percebia que o barco pedia uma compensação no leme, ligeiramente para boreste. Era só um detalhe. Mas foi observando, percebendo, lendo, comunicando, experimentando com o barco que resolvemos explorar uns arranjos para otimizar o desempenho. Velas diferentes, uma bolina removível em cada bordo. E até balão experimentamos no Sodré. E foi um espetáculo. Ele voava.
Havíamos feito uma série de testes com velas enormes, de outros barcos, todas de algodão, existentes na sede do grupo. Talvez doação, depois que o Dracon popularizou. Foi com estas velas que improvisamos uma genoa, enorme: saía do estai de proa e vinha na popa, era uma cortina. O grande sumia.
Satisfeitos com a performance inscrevemos o Sodré na Regata da Escola Naval, de 1978, classe escaler de madeira. Havia menos de dez concorrentes. A raia era ao longo do Santos Dumont e a Escola Naval.
Naquele domingo de outubro de 1978, parecia que todos os velejadores a caminho da regata resolveram sair juntos do ICB. Eram muitos barcos, multicoloridos, além da “Contente”, com o marinheiro “Ratinho”, rebocando Optimists e Pinguins.
Por irônico que fosse, pois nesta época ainda predomina vento sudoeste, no dia da regata entrou um vento leste. Saímos do ICB numa bela empopada rumo à Escola Naval. Abrimos uma asa de pombo com aquela genoa, que mais parecia um balão. A tripulação toda amontoada na popa. E o Sodré voou… Deslizava como um foguete aquático, deixando para trás solings, lightnings, stars, lazers. Nós delirávamos com aquele feito. Nunca tanta velocidade foi alcançada por um escaler de madeira. E ainda tinha as bolinas que ajudavam a evitar o reloginho, e o barco estabilizava e fazia esteira grossa. A sensação de passar por barcos tidos velozes era a melhor possível.
Desnecessário enfatizar que levamos o primeiro lugar. E ainda fomos entrevistados pela Globo, matéria veiculada no Fantástico daquele domingo.
Com o Sodré vivemos muitas aventuras…
Lá estávamos quando o escaler “Araribóia”, do Gaviões do Mar, soçobrou próximo ao Mocanguê. Participávamos de um evento, e naquele dia o mar virou feio, ficou tão batido, e o vento tão impiedoso, que para não perdermos o Sodré jogamos o barco para o meio do canal, e fomos levados, por debaixo da ponte, virados, pelas águas e ventos. Nós, ali, agarrados ao casco, segurando remos, paineiros, e objetos pessoais, o que desse para salvar, levados pela água. Noite chegando, dentro d´água. Tarde da noite, quando o vento já havia mainado, conseguimos encostar em Jurubaíba. Ainda não tínhamos a notícia de que o Araribóia não mais existia. Passamos a noite recuperando o barco. Retirando água, com as mãos em concha.
Era necessário esvaziar o barco todo, o que consumiu a noite inteira. Tínhamos água, pão molhado e cebola. Foi a partir deste evento que passei a adorar cebola.
Finalmente quando o barco já estava em condição de navegar, amanheceu. Zarpamos na direção da ponte. Estávamos exaustos, com fome, sono, frio. Vento e maré contra. Antes de atravessar a ponte fomos colhidos, novamente, por uma mega tempestade. Ventos mais fortes que os do dia anterior. Conclusão, viramos novamente. Pela experiência do dia anterior, havíamos amarrado melhor os paineiros e remos. Foi nossa sorte. Desta vez conseguimos desviar de Jurubaíba e encostamos, já noite adentro, em Paquetá. Estava tudo fechado, não havia alma viva pelas ruas. Creio que era domingo virando para segunda. Estávamos molhados, com muito frio, muita fome, e dormindo em pé. Conseguimos um orelhão funcionando. Ligamos à cobrar para Niterói, mas não conseguimos resolver nosso problema de imediato. Procuramos a administração da ilha, foi quando nos informaram que éramos considerados desaparecidos. E que o Araribóia tinha sido destruído contra as pedras, mas que ninguém havia se machucado.
Ganhamos o que comer. E descansamos. No dia seguinte zarpamos para Niterói. Na chegada ao cais do ICB clicaram uma foto do Sodré saindo de uma nevoa, como se o barco estivesse chegando de uma outra dimensão. Esta foto saiu na primeira página do Globo, no dia seguinte, ou no Dia, não lembro ao certo. Por sorte estávamos todos vivos.
EVANDRO SATHLER, advogado ambientalista, mais conhecido por “bode”, foi escoteiro no GEMAR Boa Viagem de 1975 a 1980.