Na obra autobiográfica “Lições de Escola da Vida” o fundador do Movimento Escoteiro, Robert-Baden Powell, destaca ter tido “duas vidas”: a primeira, sua carreira militar e a segunda como líder de um Movimento educativo e beneficente, voltado à juventude, que ganhou o mundo.
A realização da Promessa Escoteira, ato solene a partir do qual um jovem ou um adulto se torna membro da fraternidade mundial do Movimento Escoteiro, pressupõe o conhecimento básico da história do Movimento e da vida de B-P. Como destacado na citada obra, ambos se complementam, mas normalmente a “primeira vida” de B-P é apresentada aos aspirantes a escoteiros simplesmente como “militar inglês” e pára mais ou menos por aí.
Todavia, a influência da vida militar de B-P nos fundamentos do Movimento Escoteiro é imensa. Embora os exércitos sejam identificados majoritariamente com o uso lícito da violência e com as guerras, a vida na caserna não se resume a isso. B-P, em suas obras, deixa bem claro o quanto foi importante ter sido militar para ter as experiências que teve. Cabe aqui destacar a “camaradagem”, esse elemento tão presente nas corporações militares e que tem um grande valor no escotismo. Em uma situação de tensão ou nos desafios do trabalho, é fundamental o apoio mútuo entre os colegas. As brincadeiras, apelidos e até os conflitos e sua solução interna fazem parte dessa dinâmica. O que é o “espírito de patrulha” senão esse laço de “camaradagem” entre os membros da equipe?
O próprio termo escotismo, que significa, em síntese, a arte da exploração, o trabalho do batedor, aquele que vai na frente, tem origem militar. O livro “Aids to Scouting” (“Guia do Escotismo” numa tradução livre), publicado por B-P em 1899, o qual tratava de técnicas de exploração para militares, teve um papel fundamental para o nascimento do Movimento Escoteiro, eis que jovens passaram a adotar algumas das técnicas descritas na obra espontaneamente. Isso chamou a atenção de B-P para uma demanda da juventude por aventura.
É claro que a vida militar envolve dezenas de outros elementos, muitos deles sem qualquer relação com o escotismo. Mas isso não implica em se negar a relevância histórica dessa fonte. Disciplina, ética, cerimonial e simbologia são relevantes para o ser humano civilizado desde sempre.
Infelizmente por vezes observamos um certo preconceito de alguns voluntários adultos quando da aproximação dos escoteiros com as forças armadas. Não há nenhuma justificativa para isso, pois os militares sempre contribuíram muito para o Movimento Escoteiro, tendo, inclusive, ocorrido através deles a introdução do Movimento no Brasil como todos sabem.
Se de fato já houve na história o mau uso das forças armadas, isso também ocorreu em poderes civis. Assembleias populares e forças civis foram responsáveis por atrocidades notáveis na história, como nos totalitarismos, e até hoje se testemunha graves e recorrentes injustiças praticadas por civis investidos de poder, inclusive muitos em nome da democracia que, na prática, algumas vezes se resume à imposição de força por elites (basta lembrarmos que a Revolução Francesa se iniciou com a pregação de nobres ideais por assembleias populares, teve seu ápice no terror de milhares de cabeças cortadas e acabou resultando na restauração da autocracia e nas desastrosas campanhas imperiais napoleônicas).
Na belíssima palestra “A Educação Pelo Amor Substituindo a Educação Pelo Temor”, realizada no “3o Congresso Internacional de Educação Moral”, Genebra, 1922, B-P chama nossa atenção para o fato de que o Movimento Escoteiro nasce voltado à paz, para levar aos jovens virtudes cavalheirescas e virilidade sem passar pela violência.
Assim sendo, se a “primeira vida” de B-P foi dedicada à guerra, ela foi essencial para que houvesse uma “segunda vida” dedicada à paz. Ele deixou isso sempre muito claro, sem qualquer preconceito e com muito orgulho.
FERNANDO BORGES DE MORAES, é advogado e chefe escoteiro no Amazonas.
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