Quem já leu as obras escritas por Baden-Powell sabe como ele gostava de usar mitos como ilustração de conceitos morais nos seus textos. Costumo usar muito de metáforas e aforismos na ilustração de ideias e percebemos que Baden-Powell utilizou muito destes recursos. Quando analisamos as leituras para adultos e jovens que deram início ao movimento escoteiro e as confrontamos com as leituras atuais, vemos uma distância muito grande no que tange o uso desse recurso. Dadas as devidas diferenças históricas, culturais e o “avanço” na pedagogia escoteira nos cabe uma análise do motivo que nos fez abandonar estes recursos. Será que perdemos os nossos heróis?
Tenho analisado a mítica por trás das figuras dos super heróis há algum tempo nos textos que estão publicados na página “O escotismo que Queremos”, que são: “Shazam: O Poder da Esperança” e “Paz na Terra e Cama Arrumada”. Em ambos analiso os mitos modernos através da construção de personagens criados originalmente para as revistas em quadrinhos e que acabaram por transcender as suas mídias de origem.
Voltemos a Baden-Powell, o criador do movimento escoteiro utilizou do recurso da mitologia em vários dos seus livros. Vou analisar o uso destes recursos pelo fundador de maneira muito simplista e portanto comecemos em “Escotismo Para Rapazes”. Um dos primeiros sinais do uso da mítica está no capítulo inicial com as histórias de Kim, escritas por Rudyard Kipling que, aliás, era amigo pessoal do fundador. Baden-Powell e Kipling foram amigos por muitos anos a ponto de BP utilizar as histórias do “Livro da Selva” como fundo de cena do Ramo Lobinho. A amizade de ambos durou até a morte de Kipling, cinco anos antes da morte de Baden-Powell, que levou o nosso “bom velhinho” a escrever o obituário do grande escritor. “O nosso Movimento perdeu um amigo verdadeiro e valioso. Desde os seus primeiros dias, o Escotismo foi muito encorajado por ele. Ele foi praticamente um amigo para mim durante toda a vida, e sentirei falta da sua personalidade alegre, inteligente e prestativa.”(1) Em 1908 B-P escreveu no primeiro capítulo de “Escotismo Para Rapazes” um resumo da obra “Kim” ao qual Kipling permitiu o uso sem restrições junto de uma descrição do “Jogo de Kim”.
Kim é o romance de maior sucesso de Rudyard Kipling. Foi publicado em 1901 e é a história do filho órfão de um soldado do regimento irlandês. Seu nome completo é Kimball O’Hara e o romance se passa na Índia, então uma colônia britânica, e Kim passa sua infância como uma criança abandonada na cidade de Lahore, onde conhece um ‘lama’ tibetano ou homem santo, que está em busca de encontrar um rio místico. Kim se junta a ele na sua jornada, mas conhece o antigo regimento de seu pai. Ele é adotado por eles e é enviado para uma escola, embora nas férias continue com sua peregrinação. Em parte como resultado de seu estilo de vida espirituoso, Kim é selecionado por um coronel que percebe o seu potencial como agente secreto dos britânicos. O romance é notável por seu retrato detalhado da vida indiana, suas religiões e alguns dos aspectos mais humildes de uma terra com uma grande população e problemas associados.
Ao observarmos o personagem Kimball O‘Hara depois de algumas leituras percebemos que B-P trouxe esse personagem ao movimento escoteiro por conta das características intrínsecas de obra e do seu poder enquanto figura mitológica para aquisição de valores. Vejamos, Kim teve uma infância pobre, viveu como garoto de rua, conheceu um guia espiritual, partiu na busca de algo que lhe atribuísse um significado maior, viajou pelo país, conheceu o regimento do seu pai, foi enviado para a escola, se destacou por suas habilidades, foi reconhecido por isso e viveu uma série de aventuras. Perceberam o padrão? É a boa e velha “jornada do herói” que Joseph Campbell originalmente apresentou no livro “O Herói de Mil Faces”, publicado em 1949. Nele Campbell apresenta a jornada do herói que então foi dividida em 3 fases: “partida e separação”, “descida e iniciação” e “retorno”. O romance de Kipling na história de Kim agrega todos estes valores da jornada do herói ao personagem, dada a sua evolução enquanto personagem de criança abandonada até o seu reconhecimento enquanto agente secreto.
Após a leitura do livro percebemos o que Baden-Powell buscava neste personagem pois suas principais características são: lealdade, inteligência e astúcia, juventude, dever, cultura estrangeira, e espiritualidade. “Sacaram o pulo do gato”? Como dizia B-P é “devagar, devagarinho, que se pega o macaquinho” e haveria uma história melhor para ilustrar valores morais no seu primeiro livro para jovens? Os mitos conquistam as mentes jovens principalmente porque através de uma aura surreal de aventuras, conquistas, encanto, poderes, habilidades e possibilidades é que podemos almejar coisas incríveis e desta maneira adquirir aqueles valores morais. Quando o personagem é corajoso e astuto há jovens que se inspiram nele, quando o personagem demonstra compaixão e lealdade os jovens o tomam como exemplo moral. Entendem a força que isso tem nas mentes em formação das nossas crianças e jovens? Não podemos deixar as linhas entre certo e errado mal desenhadas para as crianças pois dessa maneira aqueles que desejam se aproveitar da sua inocência ou que buscam criar adultos facilmente manipuláveis encontram um solo fértil. Baden- Powell ainda usa como alegoria no “escotismo para rapazes” de outras histórias como os cavaleiros medievais e conseguiu dessa maneira conquistar gerações.
Após toda esta análise podemos nos questionar, será que, enquanto movimento, perdemos os nossos heróis? Sabemos que essas histórias são antigas mas as suas lições são atemporais e suas histórias muito relevantes, do contrário não haveriam tantas adaptações em filmes e séries atuais. O valor da jornada do herói está lá e é inspiradora, então por que deixamos elas em segundo plano enquanto ferramentas pedagógicas. Acredito sinceramente que podemos sim utilizá-las se nos desvencilharmos de alguns academicismos que fazem hoje parte do programa educativo dos jovens. Podemos e precisamos revisar aquilo que ensinamos observando por um prisma de objetividade e simplicidade. Nem todo conteúdo rico e denso precisa de aplicações burocráticas e inchadas que tomam o pouco tempo que já temos nas nossas atividades. Baden-Powell sabia muito bem que simplicidade não é sinônimo de desconhecimento, muito pelo contrário, o bom conteúdo pode sim ser entregue de maneira sintetizada e mais “palatável” aos nossos jovens. Percebem a dicotomia que nos encontramos hoje? Temos um programa denso entregue numa sociedade repleta de cultura vazia. Na sociedade onde todo conhecimento se encontra na distância de um clique temos a cultura da “contra informação”, pois é muito mais fácil manter a atenção dos jovens em coisas que não agregam valor algum, justamente porque a entrega desses produtos acontece de maneira muito simples, quase que orgânica.
O mais importante é que precisamos enquanto movimento educativo deixar o cinismo moderno de lado e nos fundamentar naquilo que nos agrega valor e nos faz transcender a barreira do tempo. Precisamos melhorar o mecanismo de entrega destes valores e simplificá-lo sem deixar que o conteúdo se perca. Se a entrega é simples e atrativa podemos conseguir melhores resultados e para isso começar a acontecer precisamos prover uma formação de voluntários que seja robusta e muito objetiva. Não podemos perder o nosso tempo com “gorduras” e coisas que não são inerentes ao movimento escoteiro, pois corremos o risco de nos tornarmos muito generalistas e dessa maneira perder a nossa essência. O “espírito do nosso tempo” não pode ser usado como desculpa para não refletirmos sobre nossas origens, mas sim para entender e compreender o que tem funcionado nestes mais de cem anos e o que não tem funcionado. Nesta época onde heróis são revirados do avesso e o cinismo impera nos dizendo que pessoas boas não existem, ou que são grandes bobões é absolutamente necessário parar e refletir, afinal, será que perdemos os nossos heróis?
FABIANO UESLER é Diretor Presidente do 111º Grupo Escoteiro Germânia (SC), de Blumenau/SC, Professor e Educador Social.
(1) http://scoutguidehistoricalsociety.com/kipling.htm
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