Na passada quarta-feira, no primeiro dia do mês de junho, – talvez por isso, o mês dos santos populares, ou, ao contrário, por causa disso mesmo -, viveu-se o dia mundial da criança.
Que me perdoe “meio mundo e o outro meio também”, neste dia, que a humanidade dedica à criança e que os adultos procuram transformar numa espécie de conto de fadas onde a vontade dos adultos formata o dia, supostamente das crianças, mas a verdade é que não resisto a deixar para reflexão de cada leitor, e para estes um pedido de perdão muito mais profundo, uns versos do poema de Fernando Pessoa, escrito em 1934, intitulado: Liberdade
Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
Pedia-vos, caros leitores, que lessem o poema ou se preferirem escutassem o saudoso João Villaret a dizê-lo (https://www.youtube.com/watch?v=kNSK1HHi7mA), tendo presente o pensamento dos autores da Escola Nova e, sobretudo, de António Sérgio, que defendiam a afirmação dos direitos participativos da criança, pela mobilização da participação quotidiana, para que façam parte da “Cidade”.
Porque «o melhor do mundo são as crianças», esta mesma reflexão não pode deixar de ser um elemento constante na 1ª Seção do Escotismo, a Alcateia – a Unidade onde se reúnem as crianças com 6 a 10 anos, designadas “Lobinhos”.
Baden-Powell, contemporâneo dos pedagogos da Escola Nova, com a qual o Escotismo tem uma relação identitária, escreveu, em 1916, o livro Manual do Lobinho, inspirado no Livro da Selva de Rudyard Kipling, marcando, formalmente, a criação da Alcateia, que, este ano, celebra o seu centenário. Neste empreendimento, o fundador terá tido a preciosa ajuda de sua irmã, Agnes e, sobretudo, de Vera Barclay, esta última considerada a primeira Akelá, isto é, a primeira chefe de Alcateia,
A Seção dos Lobinhos fora anunciada para o ano de 1916, pelo próprio Baden-Powell, na revista da Associação Escotista Inglesa destinada aos adultos, Headquaters Gazett, em 1914, sob a designação de “uma seção júnior para o Escutismo”.
Em 1914 há notícias que esta “seção júnior” já tinha adeptos. A própria Vera Barclay aparece como chefe de uma delas, nesse ano e, em 1915, fundara uma Alcateia em Hertford Heath, no nordeste de Londres, mas, na verdade, muitas destas experiências não tiveram muito êxito, por não haver um método e um programa adequados às crianças, de tal forma que, no dia 16 de junho de 1916, numa conferência em Londres, os chefes dos Lobinhos reuniram-se para reivindicar o esperado manual para os lobitos.
Ainda nesse ano, Vera Barclay passou a integrar a equipe liderada pelo fundador, sendo a responsável pela Seção dos Lobinhos, posto que manteve até 1927, e trabalhou, intensamente, na reformulação do Manual do Lobinho. Este livro está cheio das suas influências, feitas com entusiasmo e imaginação e, principalmente, de um grande conhecimento da natureza da criança. Ela via, claramente, a necessidade de conservar a essência do método escoteiro, mas promover a sua aplicação, tão distinta quanto possível, atendendo à natureza das crianças.
Desta forma, há cem anos, o Livro da Selva deu o enquadramento necessário ao espaço de descoberta e aventura das aprendizagens, mantendo o jogo, a ação (planejamento, execução e avaliação) e a participação (individual e em grupo – no Bando e na Alcateia), próprios da educação escoteira, permitindo manter o princípio de que a criança é a protagonista da sua própria educação, sendo que a Alcateia era um espaço que promovia (e promove) o desenvolvimento da iniciativa, da vontade criadora, da responsabilidade, do autodomínio, numa palavra do self-government, tão caro a António Sérgio.
CARLOS ALBERTO PEREIRA é empresário e ex presidente nacional do CNE – Corpo Nacional de Escutas, Escotismo Católico Português – residente em Braga (Portugal). Escreve uma coluna quinzenal para o jornal ‘Correio do Minho’, sobre escotismo.