Lá pelos anos de 2007 e 2008 começaram a aparecer os aparelhos de telefonia celular nos acampamentos. Naqueles anos, em nossa tropa, quase todas as crianças e adolescentes passaram a ter aparelhos que antes representavam uma parcela tímida no cotidiano nas atividades escoteiras. Na mesma linha, os adolescentes começaram a ir acampar levando pequenos aparelhos eletrônicos de música, que usavam quase todo o tempo.
Alguns problemas foram detectados. O primeiro deles, os aparelhos de música, eram diferentes dos “Toca Fitas Portáteis” que consumiam muitas pilhas, tinham poucas músicas e, portanto, eram menos utilizados. Esses novos, vieram com grande banco de dados digital e podiam tocar músicas por longas horas. Dessa novidade o que mais se observava era o isolamento que trazia ao seu portador, que deixava de se comunicar com o mundo ao redor. O outro, era o domínio obsessivo de informações e excesso de telefonemas que o celular proporcionava entre os jovens e seus pais durante uma atividade, atrapalhando completamente o andamento de tarefas que estavam sendo desenvolvidas. Isto, bem antes do advento “popular” do sinal de internet, como se tem hoje, com as diversas redes sociais de comunicação, como Whatsapp.
No caso dos aparelhos de música, os mesmos eram altamente compactos e portáteis e foi percebido que representavam um perigo aos escoteiros que iam ao campo. O perigo se constituía no fato de o jovem estar fazendo uma construção de madeira ou bambu, capinando uma área com ferramenta de campo, caminhando por uma trilha ou manobrando uma embarcação e, no momento em que deveriam estar atentos a avisos sonoros de alerta, não escutavam, estando sujeitos a acidentes variados. Além disso, outros problemas também eram apontados pelos chefes mais sensíveis: o fato de os jovens deixarem de escutar os sons da natureza e conhecê-la, de ficarem em silêncio, consigo mesmos e suas consciências, de terem convivência social efetivamente real com seus pares, além de uma futura surdez por consequência.
O telefone celular, naquele momento, aumentou um sistema de controle dos pais sob os seus filhos, colaborando também para um extremismo de preocupação, sobre cada momento vivido pelo jovem, contra a visão de “prepará-lo para encarar a vida”. Note-se que preparar para a vida, apesar de parecer uma postura antiquada e conservadora, ante os parâmetros modernos, tem demonstrado ao longo da história ser a atitude das mais acertadas, no que se refere à educação das crianças e adolescentes.
Mesmo estando distantes e com pessoas de confiança (chefes escoteiros), eram comuns os constantes telefonemas para verificar se estavam bem. E quando, por acaso, o filho esquecia de lhes telefonar ou não atendia a um telefonema, aquilo gerava um transtorno psicológico e afetivo para os seus pais, que se consumiam em preocupações. Antes, a comunicação se dava apenas em casos de emergência e todos se retiravam em um isolamento “técnico pedagógico”, para acampar.
Muitos foram os casos, por exemplo, de jovens relatarem desconfortos ou chateações por telefone, aos seus pais, antes de contar aos monitores, chefes ou amigos que estavam ao lado, no acampamento, ou de simplesmente encontrarem-se diante de uma necessidade e resolvê-la, como propõe o escotismo. Na maioria das vezes, obviamente quando não é um caso de risco que mereça a intervenção de um adulto, a postura de lançar-se a resolver a questão, demonstra maturidade emocional e um avanço no comportamento, provocado por uma oportunidade pedagógica. Noutros casos, uma reclamação sobre picadas de marimbondos furiosos, que, na verdade não passavam de três picadas de mosquitos inofensivos, potencializavam uma preocupação à distância.
A solução imediata adotada pelo nosso corpo de chefes foi a criação do “saco do celular”. Quando chegava ao local do acampamento o chefe apresentava o “saco” e todos os jovens deviam depositar lá os seus aparelhos de tocar música e telefones portáteis. Ficavam guardados até o fim do acampamento, na barraca do chefe. Desta forma melhorou a concentração no acampamento e também, os aparelhos (normalmente caros) eram preservados de acidentes como quedas e de exposição à água. A medida trouxe grande revolta aos pais e responsáveis, que seguiam no ritmo diário de controle, mas a eles era informado que em caso de necessidade, deveriam telefonar para os chefes que estavam no acampamento, e os jovens seriam trazidos para falar ao telefone. Aos poucos todos foram se adaptando.
Hoje, em 2016, com a popularização das redes sociais e da internet, já é percebido outro tipo de comportamento. O “saco do celular” deixou de ser tão necessário pois os aparelhos agora são mais sofisticados, possuem as câmeras fotográficas e outros aplicativos tão interessantes como a meteorologia, o mapa das estrelas e até a variação das marés. Em suma, não se trata apenas de um telefone portátil, ou de um aparelho de som, agora apresenta até holofotes de luminosidade e lanternas, dentre outras milhões de aplicabilidades.
Repara-se, porém, que todas as pessoas – jovens e adultos – têm tido menos paciência para o uso do telefone e das redes sociais, e que aquela avidez pelo controle familiar diminuiu, embora ainda ocorra com uma menor intensidade, bastando pequenas respostas por mensagens escritas, para satisfazer a curiosidade cuidadora. Nasceram outros problemas: o vício, a dependência e a exposição a diversos crimes cibernéticos e aos criminosos que passaram a atingir além da internet residencial, os aparelhos de telefone celular de cada um – o que merece precaução, observação e muita orientação.
O grande problema no momento, é que os telefones com tantos aplicativos não possuem bateria que aguente e, obviamente, no acampamento, não existe fartura de tomadas para recarregá-los. Por si sós, os aparelhos tornaram-se limitados para a recarga de energia. Agora são considerados falta de educação quando usados em momentos não adequados, ou seja, passou a existir uma convenção de comportamento, baseada no senso comum.
A conclusão é que o movimento escoteiro deve ir adaptando-se conforme as mudanças de comportamento sociais, mas que em hipótese alguma significa abdicar de seus valores, missões. Da mesma forma, os adultos não devem furtar-se da missão de agentes educadores, ao acompanhar as mudanças com responsabilidade e ações necessárias. É importante que haja um consenso entre os chefes escoteiros, de estarem sempre atentos para proporcionar as características essenciais do escotismo, tais como a vida ao ar livre, a vida em equipe e a responsabilização dos jovens com suas pequenas tarefas, dentre outras coisas apregoadas e praticadas pelo movimento há mais de um século, e que não podem ser abandonadas em nenhuma hipótese.
ANDRE TORRICELLI F. DA ROSA é bacharel em direito e pós graduado pela Universidade de Coimbra em Portugal. Atualmente é Conselheiro Nacional Suplente da União dos Escoteiros do Brasil e Presidente do Centro Cultural do Movimento Escoteiro.