Baden-Powell escreveu o “Escotismo para Rapazes” para cumprir o desafio lançado pelo líder da Boys Brigade, William Smith, que pediu ao fundador que elaborasse seu próprio programa para jovens baseado no “Aids to Scouting”. Seria uma obra genérica para ser aplicada em qualquer organização juvenil.
É automático o vínculo de B.-P. à autoria do livro que fez surgir o escotismo, mas, ao contrário do senso comum que permeia o movimento, o “Escotismo para Rapazes” é um grande aglomerado de ideias, um compêndio de atividades e conceitos já formulados e colocados em prática. O que se entende por autoria fica, por demais, grandioso nas mãos de B.-P. ou qualquer homem à sua época no que se refere a escotismo.
Certificado de Primeira Classe da Boys Brigade
Sinais de Pista
Aos que tiverem oportunidade de visitar Gilwell, onde o original do Escotismo para Rapazes se encontra, além da caligrafia de Baden-Powell poderão apreciar os recortes de livros colados sobre o rascunho e as várias referências externas.
Baden-Powell era um ávido leitor, fato que se evidencia nas menções que faz em suas obras e que tiveram influência direta em suas ideias. O Escotismo para Rapazes, por exemplo, arranca com a história de Kim, do livro escrito por Rudyard Kipling em 1901, misturando as qualidades do personagem às características de um autêntico escoteiro. Baden-Powell refere-se ao estudo da natureza ou à própria atuação dos “sertanistas”, para ligá-los ao escotismo, com outras obras como a “Beasts of the Field”, “School of the Woods”, “Shut Your Mouth And Save Your Life”, “My sixty years in the plains” etc.
O Guia do Chefe Escoteiro não fica atrás: é quase um resumo bibliográfico de estudiosos da educação, dada as várias referências citadas, como Dr. Alien Warner, Drs. Schofield e Jackson, Sr. F.D. Flow, Richard Jefferies, entre outros autores.
No entanto, podemos ser induzidos a pensar que o método de equipes, ou seja, o Sistema de Patrulhas ou o que se entende por autoeducação e atribuição de responsabilidades através da arte mateira foi algo inédito à época, talvez idealizado nos primórdios da polícia africana, e daí o sucesso do escotismo. Mas nada era novo, tendo apenas maior visibilidade na figura do herói de Mafeking, Baden-Powell.
A origem
Baden-Powell evitava colocar-se ao papel de fundador do escotismo. Já em 1914, na revista The Scout (publicação mensal inglesa dedicada ao movimento), B.-P. Ironiza:
“Em um dos recentes jornais, vejo que alguém revelou-se como o inventor original do Escotismo.
Este é o quarto que agiu assim em quatro anos. Tenho a impressão que o fundador original, Epictetus, morreu muitas centenas de anos atrás.”
Baden-Powell estava se referindo aos ensinamentos do filósofo grego e, particularmente, ao livro “O Encheirídion de Epicteto”, lançado no séc. II. Esse livro pode ser encontrado na internet.
Acontece que a formação do indivíduo através de atividades, a ajuda ao próximo como caminho para a própria felicidade, o aprender fazendo e o exercício daquilo que entendiam por “cidadania”, tão bem assimilado e praticado hoje no movimento, antes mesmo de Baden-Powell já contava com seus adeptos. É o caso do próprio Epicteto, da educação dos espartanos ou, recorrendo aos anos de B.-P., das atividades de Seton e Dan Beard.
A modéstia do fundador ao não ver-se como o pai do escotismo, na verdade, era apenas um reconhecimento tácito de que a paternidade do movimento, se é que havia, era dividida entre muitos.
Nascido na Inglaterra em 1860 e residente no Canadá desde a infância, Seton foi um entusiasta da cultura indígena. Dedicou seus estudos à natureza e vida selvagem e, como Baden-Powell, era um grande artista e naturalista. Escreveu e ilustrou vários livros sobre animais e vida indígena, tornando-se conhecido nos Estados Unidos. Seus principais livros foram Two Little Savages e Birch-Bark Roll of the Woodcraft Indians, e ambos exerceram forte influência em Baden-Powell.
Em 1898, morando em Cos Cob, Connecticut (EUA), os garotos de sua vizinhança decidiram testar sua paciência, rabiscando palavrões em seu portão. Em vez de chamar a polícia, Seton convidou os meninos para acampar em sua propriedade. Os rapazes tiveram um momento agradável, acampando e aprendendo sobre a natureza. A partir daí, Seton começou a esboçar a ideia de um grupo chamado Woodcraft Indians. A primeira “tribo” (nome dado ao grupo) seria formada em 1902.
Seton baseou seus símbolos e atividades na arte mateira dos índios e na cultura dos nativos americanos. Os “braves” (nomenclatura dada aos garotos que participavam) da Woodcraft Indians poderiam ter de 8 a 15 anos de idade. De 3 a 10 “braves” formavam um “bando”, e dois ou mais bandos formavam uma “tribo”. Os participantes poderiam ganhar distintivos ao aprender habilidades. As insígnias, chamadas wampum, eram pedaços de conchas.
Daniel Carter Beard – “Dan Beard”
Nascido em 1850 nos Estados Unidos, Beard era ilustrador, autor de livros e artigos que promoviam a arte mateira e a prática do campismo.
Teve uma infância repleta de diversão nos bosques ao longo do rio Ohio. Ainda jovem, Dan Beard se tornou topógrafo e cartógrafo e, aos 28 anos, abandonou o trabalho para ilustrar e escrever livros e revistas.Em 1882, escreveu sua obra mais popular, o The American Boys’ Handy Book.
“Meu livro era cheio de ideias de atividades: natação, habilidades em acampamentos, construção de barcos, pescaria…”, conta Beard.
Em 1905, enquanto era editor da “Recreation Magazine”, Dan Beard iniciou o “Sons of Daniel Boone”. A proposta era mostrar aos meninos como se divertir ao ar livre, ensinar boa cidadania e promover a conservação do meio ambiente. Beard explicou seu programa na Recreation Magazine. Não havia distintivos para conquistar e não havia líderes adultos.
Beard sugeria que os meninos fizessem seus próprios uniformes ao estilo “sertanista”. The Sons of Daniel Boone (e sua posterior organização, a “The Boys Pioneers”) tinha “paliçadas” (ou stockades) de oito meninos cada. Quatro stockades formavam um “forte”.
Nem os “Sons of Daniel Boone” de Beard nem os “Woodcraft Indians” de Seton tiveram muitos membros, sendo eclipsados pelo movimento escoteiro. Ambos ajudaram a fundar a Boys Scouts of America e ocuparam cargos na associação. Seton tornou-se Escoteiro Chefe e Beard tornou-se Comissário Nacional.
O (in)evitável confronto
A história entre Baden-Powell, Beard e Seton é mais complexa do que se possa imaginar: acusações e ironias envolvendo questões de plágio e reconhecimento sempre estiveram em pauta entre o trio. A questão era mais acirrada entre Baden-Powell e Seton:
B.-P., conhecendo as atividades de Seton, esperava ajuda deste último para concretizar um programa que estava escrevendo para garotos a pedido de William Smith – e que viria a ser o “Escotismo para Rapazes”.
Em 1906, escreve a seguinte carta:
“Talvez lhe interesse saber que eu tenho elaborado um programa com um livro para educação de garotos como exploradores [scouts] – que curiosamente funciona bem sobre a ideia do teu. Então, devo dizer que seu trabalho é de especial interesse para mim.” – Baden-Powell, em carta para Seton – Agosto de 1906.
Seton realizava turnês pela Inglaterra para promover seu Woodcraft e, em outubro de 1906, encontra-se por primeira vez com Baden-Powell no luxuoso hotel Savoy. Foi neste encontro que Seton, ao saber da proposta de B.-P., afirmou que o iminente fundador do escotismo estava roubando suas ideias e a essência de seu programa. Baden-Powell, no dia seguinte, responde através de uma carta:
“Estou anexando uma espécie de nota preliminar que enviei no início deste ano [para William Smith] sobre meu programa para Escoteiros. Você verá que nossos princípios parecem praticamente idênticos. Só que o meu não necessita, necessariamente, uma associação própria – é aplicável [o programa] às organizações já existentes. Se nós pudéssemos trabalhar juntos na mesma direção, eu me alegraria.”
Segundo Tim Jeal, biógrafo de Baden-Powell, Seton também desejava uma parceria entre os dois para promover o Woodcraft Indians na Inglaterra. Contudo, Baden-Powell teria copiado suas ideias e decidido continuar sozinho com o que chamaria de “Movimento Escoteiro”.
Ainda segundo Jeal, Seton alegou que o “General Baden-Powell trabalhou para mim por dois anos e, em 1908, tornou o movimento muito popular, alterando o nome de Woodcraft Indians para Escoteiros.” Aqui, Seton se refere ao pedido de revisão do Birch-Bark Roll of the Woodcraft Indians que fez a B.-P. Em 1906.
O site Scout Guide Historical Society faz uma análise desse encontro:
“Seton deveria ter percebido que cada um deles estava trabalhando com um produto concorrente. Para usar uma analogia de negócios, era uma empresa pesquisando sua eventual entrada no mercado; e a Woodcraft Indians era a concorrência. No Hotel Savoy, Seton facilitou as informações para B.-P. Dessa forma, se o general poderia ser acusado de espionagem industrial, a seguir, o naturalista poderia ser acusado de cometer suicídio empresarial por ter sido excessivamente franco com informações de sua propriedade.”
Apesar de Seton ter se precipitado ao acusar Baden-Powell de plágio antes mesmo da publicação de qualquer material referente a Escotismo, é fato que o Scouting for Boys foi lançado com vários jogos e ideias dos livros de Seton, e não só dele.
A partir daqui, do encontro, são várias as trocas de cartas entre Baden-Powell e Seton, sempre pautadas pela diplomacia e decoro, mesmo com fina ironia e acusações subliminares.
Ernest Seton não reivindicava dinheiro. Apenas queria o reconhecimento de Baden-Powell e os créditos pelas atividades propostas no “Escotismo para Rapazes”.
Biógrafos de Seton afirmam que tal reconhecimento nunca chegou. Já Tim Jeal afirma que as posteriores edições eram recheadas de créditos e agradecimentos a Seton, chegando a ter, como exemplo, 10 páginas em que se menciona o nome do criador da Woodcraft Indians na edição de 1910 do Scouting for Boys.
Como parte deste reconhecimento, num jantar em Nova Iorque, em 1910, Seton apresentou Baden-Powell como o “pai do escotismo” aos assistentes. A resposta de B.-P foi essa:
“Está enganado, sr. Seton. Devo dizer que o sr. ou Dan Beard são os pais do escotismo – há muitos pais. Posso dizer que somente sou um dos tios.”
A verdade é que Baden-Powell cita Seton já na primeira edição dos seis fascículos do Scouting for Boys – sendo exato, no fascículo número seis.
O que aconteceu foi que, como o lançamento era quinzenal, o nome de Seton não aparecia nos cinco primeiros fascículos, à diferença de seus jogos que, sim, apareciam.
Mas nem esses créditos, imediatos ou tardios, apaziguavam os ânimos de Ernest Seton, que continuava a escrever a Baden-Powell:
“Quando seu primeiro ‘Scouting for Boys’ apareceu em 1908, fiquei surpreso ao ver todas minhas ideias copiadas, todos os meus jogos reproduzidos e disfarçados com novos nomes, os fundamentos do meu programa… e nenhuma palavra de reconhecimento ou explicação de por que eu deveria ficar de fora de um movimento que eu comecei. Ao mesmo tempo, eu escrevi uma carta de protesto, perguntando por que você tinha usado todas as minhas ideias e jogos sem me dar nenhum crédito. Você se limitou a afirmar, mais tarde, que muitos dos jogos foram inventados por mim, o que é um erro. Não foram alguns jogos, mas quase todos eles, aperfeiçoados através de muita prática e com meus direitos autorais. E nada é dito sobre o mais importante: que a ideia [do escotismo] originalmente veio de mim e fundada na Inglaterra em 1904”
Baden-Powell se desculpa da seguinte maneira:
Muito obrigado pela sua gentil carta. Eu lamento muito ter omitido a menção da fonte de vários jogos do Birch-Bark Roll [livro de Seton]. Mas, na verdade, eu tinha feito uma nota geral no início do livro [Escotismo para Rapazes], mas a cortei e a inseri no final, como você verá na parte seis. Fazendo isso, não tinha refletido que os créditos só seriam lidos depois de ter apresentado os jogos. Lamento muito por esse descuido. É muito gentil de sua parte levar o assunto de maneira tão bem-humorada.
The Birch-bark Roll of the Woodcraft Indians
A história entre Seton e Baden-Powell nunca teve um desfecho claro no qual se indicasse a chegada a um acordo. Apesar da publicação de uma carta de Seton, onde ele agradece o reconhecimento de B.-P., as críticas sobre plágio continuaram durante anos.
“[…] O restante de sua carta, na qual você indica menções do meu livro em dez páginas do seu [Escotismo para Rapazes], é sem dúvida correto […]. Agradeço o espírito amável com o qual você escreveu, e acredito que a situação não foi motivada por qualquer má intenção”.
Os finalmentes
Mesmo se tornando Escoteiro Chefe pela Boy Scouts of America, sempre houve ressentimento por parte de Seton em relação a Baden-Powell. Seguidores de Seton dizem que ele tinha suas razões para ressentir-se da situação; já os de Baden-Powell afirmam que os créditos foram dados ou até mesmo que o método era inédito, não havendo motivo para se levantar embates sobre plágio.
É claro que B.-P. usou de boa parte do programa e jogos do Woodcraft Indians, ou mesmo aprimorou seu sistema de progressões (que supostamente começara em 1897 na Índia, com a “flor de lis” da 5th Dragoon Guards) através de distintivos com base nos wampum de Seton; e até os famosos “gritos de patrulha” imitando animais já propostos no Birch-Bark Roll. É provável que o próprio sistema de Tropas, com suas patrulhas e patrulheiros, tenha encontrado solo fértil nas ideias de Baden-Powell a partir do que propunham Seton ou Beard. A principal diferença entre Baden-Powell e Seton, ao menos naquele então, era que Baden-Powell pretendia desenvolver um programa que pudesse ser aplicado em qualquer organização (como a Boys Brigade). Seton, por sua vez, queria esse mesmo programa somente para sua associação.
Por outro lado, como indica a abertura deste texto, é difícil prevalecer a figura do autor quando se trata de escotismo. Pela universalidade do método, pela simplicidade e obviedade, encaixa-se melhor a figura de um compilador ou organizador de ideias. E, aqui, B.-P., Seton e Beard são réus confessos ao recorrerem uns aos outros, ou à cultura indígena, ou à experiência militar ou ao folclore dos nativos para se inspirarem em seus métodos.
Os três “tios” do Escotismo – Seton, Baden-Powell e Dan Beard
Seton talvez tenha se precipitado em diversas ocasiões, sustentando o mesmo discurso de “falta de créditos”, quando continuamente, seja no próprio Escotismo para Rapazes ou em artigos em revistas, Baden-Powell reconhecia seu trabalho.
No jantar que foi chamado de encontro “Waldorf”, em Nova Yorque, Baden-Powell reconheceu publicamente Seton como o pai do Escotismo. Mas as críticas continuavam, e se agravaram depois de Seton ter sido desligado do cargo de “Escoteiro-Chefe” da BSA por não ser considerado um americano.
Como certa ironia à situação, Ernest Seton também foi alvo de críticas. Dan Beard, o criador do The Boys Pioneers, acusou Seton de ter plagiado seu livro quando escreveu a primeira edição do BSA Handbook, da associação escoteira americana.
O leitor poderá fazer o download dos livros de Baden-Powell, Seton e Dan Beard abaixo.
- Scouting for Boys (Baden-Powell)
- The Birch-bark Roll of the Woodcraft Indians (Ernest Seton)
- The American Boys’ Handy Book (Dan Beard)
Autor:
FERNANDO ROBLEÑO é Assessor de Comunicação e membro do 83ºGE Olave Saint Clair (MG).
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